O lugar político dos afetos

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Na verdade, não é concebível uma comunidade desprovida de afetos e a atomização da sociedade, o cada um a viver a sua vidinha desprendido daquilo que à sua volta acontece com os seus semelhantes (com o seu destino pessoal neste vasto mundo transformado em mundo-metrópole), é um projeto contra a própria ideia e prática de fazer comunidade, dessa intricada tecedura de laços comuns. A dimensão afetiva da política é a carne da sociedade.

Aquilo que se toca e aquilo que (ao menos pretensamente) nos está interdito tocar; aquilo que se abraça e aquilo que se recusa ou reprime, pelas mais variadas e complexas razões, abraçar; aquilo que se beija e aquilo que nos escandaliza beijar; aquilo, enfim, que se ama visceralmente ou aquilo que se odeia repulsivamente; tudo isto, toda esta ecologia dos afetos, define não só o nosso lugar na sociedade, a forma como nos relacionamos com os outros no nosso tempo e espaço comuns, bem como toda a potência ou capacidade de expansão dos nossos corpos e da nossa carne. E é também por os afetos definirem o tipo de sociedade em que vivemos e o tipo de sociedade onde desejamos ou desejaríamos viver que os afetos contêm em si uma dimensão subversiva e até revolucionária. Diz-me até onde vai a tua capacidade afetiva e a forma como expressas a mesma e eu digo-te em que sociedade tu vives e onde tu desejarias afinal viver.

Vejamos a forma como o conservadorismo, vertido na direita católica ou na extrema-direita, persegue a exibição dos afetos homossexuais; ou mesmo como pela discussão em torno do “acolhimento de migrantes”, da definição de fronteiras, passa o debate sobre até onde os nossos afetos — a nossa capacidade de acolher, de abrir os braços aos outros — são capazes de ir. É que os afetos não pertencem apenas a uma dimensão pré-política relacionada com o nosso ser emotivo ou puramente “natural/biológico”; os afetos, pelo contrário, realizam-nos enquanto indivíduos, enquanto identidades ficcionadas, na sociedade. Aquilo que nos frusta ou aquilo que nos deixa brutalmente encolerizados, da mesma maneira de aquilo que nos seduz ou nos entusiasma, define-nos não apenas enquanto personalidade como define o modo como somos afetados pela comunidade pela qual damos o nosso corpo e a nossa vida. E sermos sujeitos de paixões não nos torna mais fracos ou vulneráveis; pelo contrário é precisamente pela minuciosa, vasta e complexa malha de afetos através dos quais afetamos e somos afetados que o mundo como que se expande ou contrai na justa medida da expansão ou contração dos nossos afetos. E não podemos compreender sequer o que pode ser isso da liberdade sem percebermos como a mesma se joga ou se constrói por meio da nossa liberdade de não apenas afetarmos como de nos deixarmos ser afetados pelos outros. Um mundo assético, esterilizado de afetos, só pode ser um mundo fechado sobre si mesmo e opaco, para não falar de opressor e até totalitário. Da mesma maneira que um mundo onde os afetos estão sujeitos às dinâmicas do mercado e/ou inteiramente calculados/administrados é um mundo artificial e cínico.

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