O manto da invisibilidade sobre quem Cuida

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Cuidar. Cuidados.

Palavras usadas de forma frequente por todas nós sem termos, muitas das vezes, consciência do peso que carregam. Ao falar em cuidados penso na minha avó e de como me conta de quando esteve emigrada em França e percorria quilómetros com o meu pai num carrinho para chegar às casas das senhoras de quem limpava os lares e cuidava dos filhos. De como quando voltaram para Portugal e o meu avô ia de terra em terra vender eletrodomésticos ela ficava na lojinha pequena de aldeia a atender os clientes (poucos) que iam aparecendo, ao mesmo tempo que cuidava do filho mais novo que por ali brincava. E quando se mudaram para a pequena cidade do interior, trabalhavam na loja de comércio que abriram juntos, chegava a casa depois das sete, fazia o jantar para o marido e os filhos e ainda voltava para o estabelecimento para deixar tudo pronto para o dia seguinte. Estes episódios que ela me conta passam-se nos anos 70 e 80. Contudo, hoje continuamos a testemunhar e a ouvir histórias como esta da minha avó, sendo por isso que quando oiço falar de Cuidados me vêm sempre à cabeça rostos de mulheres.

Silvia Federici em Calibã e a Bruxa procura repensar o desenvolvimento do capitalismo a partir de um ponto de vista feminista. Explica-nos que disciplinar os corpos das mulheres era algo essencial para o sucesso da consolidação do capitalismo, uma vez que as mulheres eram vistas como produtoras e reprodutoras da mercadoria capitalista mais importante: a força de trabalho. O trabalho reprodutivo e a divisão sexual do trabalho trouxeram mantiveram o manto de invisibilidade sobre quem sustenta o capital: “(…) a importância económica da reprodução da força de trabalho realizada no âmbito doméstico e a sua função na acumulação do capital tornaram-se invisíveis, sendo mistificadas como uma vocação natural e designadas como ‘trabalho de mulheres’” (Federici, Silvia pág.145) . Percebemos assim que as mulheres são aquelas que cuidam da classe trabalhadora precária de hoje e as que assumem a função de parir a classe trabalhadora precária do amanhã.

Em Portugal, após o 25 de Abril consagraram-se pilares públicos da democracia e do Estado Social, cabendo a este a garantia do direito e acesso à Saúde e Educação públicas. Porém, o que constatamos é que o Direito ao Cuidado ficou de fora da equação, estendendo-se para o trabalho doméstico dentro das famílias, não sendo regulado nem pelo Estado nem pelo mercado, mas sim por um sistema patriarcal hierárquico.

É no trabalho do cuidar e do doméstico que enquanto corpos existimos. Porém, a situação legislativa em matéria de cuidados encontra-se bastante atrasada. Estima-se que exista um grande número de pessoas a serem cuidadoras informais onde a precariedade e a marginalização das mesmas é uma sentença. Os agentes cuidadores continuam a ser as famílias ou vizinhança, maioritariamente as mulheres, a quem podemos designar de redes informais de cuidados. Naquelas que são as redes formais, através de IPSS, onde o Estado e as famílias são cofinanciadoras as longas listas de espera são uma realidade empurrando as pessoas para o mercado privado dos cuidados. Mas num país de salários precários e baixas pensões esta espera resulta em informalidade e invisibilidade e falta de acessos a cuidados de saúde ao longo da vida.

Ocorre a necessidade de uma resposta efetivamente pública e coletiva de cuidados, de modo que estes sejam um serviço universal e acessível a todas as pessoas. Esta resposta tem que começar pela redistribuição dos cuidados, a desfamiliarização dos mesmos, onde o Estado através de políticas públicas responda às necessidades das pessoas transformando o regime dos cuidados. Onde as questões da igualdade de género e da divisão sexual do trabalho façam parte do debate. E lembrar aquelas que dedicaram uma vida inteira a cuidar do outro, pessoas que nos últimos dez, vinte, trinta anos deixaram de trabalhar sejam reconhecidas para que este não continue a ser o modelo do futuro. ´

Artigo adaptado lançado na Revista “Aos Cuidados”

Artigo publicado

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